quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

As Intermitências da Morte - José Saramago

Opinião:
"No dia seguinte ninguém morreu". Começa assim mais uma obra do nosso Nobel. Não sei se romance é o termo correcto para a classificar mas, tomando esse termo como o correcto, é um romance de uma originalidade tremenda. Saramago brinda-nos mais uma vez como uma obra de uma qualidade literária sem igual. Passagens de deixar qualquer leitor, mesmo o mais céptico, sem folgo. Eu que, normalmente me retraio um pouco e não gosto de ver os livros sublinhados, por vezes me apetece lê-lo com um marcador ao lado para ir marcando certos excertos geniais.
No primeiro dia de um novo ano num país cujo nome não é especificado, a população deixa de morrer. Passando despercebido por muitos no início, este fenómeno começa a causar estranheza e aflição por parte dos mais variados órgãos da sociedade à medida que as horas avançam. No governo, as previsões e possíveis soluções surgem imediatamente. A catástrofe, a calamidade ou uma maravilhosa notícia? A igreja emite também imediatamente o seu parecer relativamente a este fenómeno. O que é afinal a igreja sem morte, pergunta o cardeal. Sem morte a ressurreição não existe e sem ressurreição a religião não existe. Toda a influência que esta tem poderá desaparecer se os recentes acontecimentos não cessarem. As agências funerárias e seguradoras vêem o seu negócio que antigamente prosperava com a desgraça de uns, ser agora a sua própria desgraça. Hospitais, lares e outros locais de acolhimento temem que o espaço que possuem seja cada vez mais insuficiente para albergar todos aqueles que ficam no limbo entre a vida e a morte mas que, tal como diz Saramago, "teimam em não cair". Os hospitais começaram a recusar doentes moribundos e a enviar os que já lá estavam para a casa de familiares que os pudessem receber. O mundo, que tanto ansiava por algo assim, vê que nem tudo é positivo na vida eterna. A astúcia e capacidade de resolver problemas foi sempre uma característica presente nos seres humanos e este caso não é excepção. Rapidamente uma família, ao ouvir um burburinho vindo de regiões vizinhas dizendo que "lá fora se continua a morrer" leva dois familiares para o outro lado da fronteira para que estes vão lá morrer. Este acto é um nicho de mercado rapidamente descoberto por uma nova associação, a maphia. Com ph para a diferenciar da outra. Estes "oferecem" os serviços de transporte para levar as pessoas a morrer ao outro lado da fronteira. O caos e a revolta imperam até que inevitavelmente faz-se ouvir quem por momentos deixou de trabalhar: a morte. A morte com letra minúscula porque a Morte com letra maíscula é algo totalmente distinto. Se as pessoas consideram a morte maléfica, a morte aconselha-as a não querer descobrir o que é a Morte. Esta assume várias formas durante o livro e vai comandado o desenrolar dos acontecimentos.
Para além de um romance (se o é realmente) este livro é uma reflexão sobre a vida e a morte. Sobre o que estas significam e sobre o que qualquer alteração que ocorra numa delas pode alterar o rumo e o modo como vivemos. É também uma crítica a muitas instituições que inevitavelmente regem a nossa vida e como os seus comportamentos divergem de uma maneira muito vincada quando confrontados com acontecimentos de grande importância. Tudo isto numa abordagem irónica e com uma qualidade de escrita a qual Saramago já nos habituou.
Não é o meu livro preferido de Saramago, mas é sem dúvida dos melhores que já li e dos mais originais. Recomendo sem dúvida esta leitura.

4 comentários:

  1. Aproveito este post para confessar que ainda não li nenhuma obra de Saramago. Tenho perfeita noção de que é uma enorme falha da minha parte, principalmente por me assumir como leitora...
    Não o fiz por desinteresse, tenho até bastante curiosidade em ler o nosso Nobel. Sinto é que quando começar, não vou parar mais ;)

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    1. Olá Ana :) Tem tempo para ler Saramago, às vezes vão aparecendo tantos autores à nossa disposição que não conseguimos dar conta de tudo. No entanto concordo consigo, acho que Saramago é daqueles autores que deveria ter um selo a dizer que provoca dependência :)

      Boas leituras!

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  2. Gostei bastante deste livro. Saramago consegue fazer, tal como já havia feito com o "Ensaios sobre a cegueira", um retrato muito fiel do homem, das suas limitações e da sua capacidade de "atropelar". Valem mais que alguns estudos. E depois ligamos a televisão, olhamos para os telejornais, e vemos que a realidade não fica a dever a essas ficções em nada, o homem é mesmo cruel. Ou, como escreveu Céline, só do homem devemos ter medo.

    Boas leituras!

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    1. Concordo consigo. Espero também ler em breve o Ensaio Sobre a Cegueira. Sempre achei Saramago um expert em expor as características negativas do homem nos seus livros e segundo tenho lido por aí, acontece ainda com mais evidência no Ensaio Sobre a Cegueira onde várias pessoas já me disseram ser chocante.

      Boas leituras caro Carriço, é um prazer tê-lo por aqui :)

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